O que é Propriedade Intelectual?
Lições
de Propriedade Intelectual em Homem de Ferro 2*
O segundo volume da trilogia do Homem de Ferro abre com belíssimas cenas da armadura Mark V, voando pelos céus de Manhattan. Essas imagens são um presente, tanto para aqueles que leram os quadrinhos no século passado, sem sequer sonhar com esta produção épica, quanto para os mais jovens, que recebem as releituras contemporâneas do universo dos super-heróis Marvel.
Além dos lindos efeitos especiais e da intrigante saga do Homem de Ferro, o cinema também pode ajudar a compreender um pouco mais sobre o que é Propriedade Intelectual.
Após assumir publicamente sua identidade secreta, o personagem vivido por Robert Downey Jr discursa, na Stark Expo:
- O que importa é legado! O que importa é o que decidimos deixar para as gerações futuras! E é por isso que, no próximo ano, os melhores e mais brilhantes homens e mulheres, de países e empresas, do mundo inteiro, unirão seus recursos e dividirão sua visão para construir, assim, um futuro melhor!
Toda essa animação perde um pouco o ímpeto, quando uma jovem oficial de justiça entrega a Stark uma intimação de comparecimento, logo na manhã seguinte, à Comissão das Forças Armadas do Senado estadunidense.
Em Washington DC, o presidente da Comissão, Senador Stern, indaga a Tony se ele possui uma “arma especializada”, o que o Homem de Ferro procura desconversar... a Comissão chama Justin Hammer, o principal fornecedor de produtos de Defesa para o Governo Federal, que faz breve e provocativo depoimento.
Além do CEO das Hammer Industries, a Comissão convoca o Tenente-Coronel James Rhodes, militar da Força Aérea, que figurou como aliado do Homem de Ferro, desde o episódio anterior.
O Senador Stern
determina que o Coronel Rhodes leia
um pequeno trecho de um relatório, que poderia colocar Stark em cheque, perante à opinião pública. Trata-se, obviamente, de uma cilada, para caracterizar o Homem
de Ferro como “uma ameaça potencial à segurança do País e aos seus
interesses”.
Para piorar a situação, Stern ordena que sejam exibidas imagens,
captadas pelo Serviço de Inteligência, com tentativas de outros
países em realizar cópias da poderosa armadura. Isto confirmaria, de fato, o Homem
de Ferro como “ameaça à Segurança Nacional”.
A reação inesperada do protagonista, no entanto, vira o jogo! Por meio de seu celular, Tony assume o controle da apresentação, passando a exibir outras imagens. Agora, fica claro para todos, que as tentativas de cópia de sua armadura são um verdadeiro fiasco, não chegando aos pés das tecnologias das Indústrias Stark. Com esta nova perspectiva, o herói da série retoma a palavra:
- Eu acho que deveriam me agradecer! Eu sou uma garantia de segurança!
- Está funcionando! Estamos seguros! A América está segura!
- Quer a minha propriedade? Não vai ter!
Diante de seu excelente desempenho nessa audiência, uma coisa é certa: o Homem de Ferro jamais cederá a qualquer pressão, para revelar os pormenores tecnológicos de sua armadura de guerra.
Mas... fica a pergunta: será mesmo que estamos falando de propriedade? Em outras palavras: estariam essas poderosas tecnologias protegidas pela propriedade intelectual?
Para começar a responder, é preciso considerar algumas bases desse sistema de proteção. Em
primeiro lugar, vejamos o que diz a Convenção,
que instituiu a Organização
Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI):
ARTIGO
2.º
Definições
Para os fins da
presente Convenção, entende-se por:
viii) Propriedade intelectual, os direitos relativos: às obras literárias, artísticas e científicas; às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão; às invenções em todos os domínios da atividade humana; as descobertas científicas; os desenhos e modelos industriais; às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais; à proteção contra a concorrência desleal e “todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico.”
Como se vê, a OMPI não conceituou formalmente o que é propriedade intelectual, apresentando um rol meramente exemplificativo de direitos.
Historicamente, o conceito de propriedade intelectual representou uma dicotomia formada pela propriedade industrial e pelo direito autoral. Sobre a primeira dimensão, encontramos, na Lei de Propriedade Industrial (LPI)[1] os seguintes instrumentos jurídicos: patentes, marcas, desenho industrial e indicações geográficas.
Quanto ao direito autoral, além das obras citadas exemplificativamente no art. 7º, da Lei de Direitos Autorais (LDA),[2] há os direitos conexos dos intérpretes de obras intelectuais, os direitos da indústria difusora de obras e, mais recentemente, os programas de computador ou softwares, que são considerados como obras literárias para fins de proteção jurídica.[3]
Porém, o conceito de propriedade intelectual rompeu a mencionada dicotomia, uma vez que, modernamente, tem surgido outros conjuntos de direitos que não se amoldam perfeitamente à propriedade industrial ou ao direito autoral.
Como exemplos destes direitos que são únicos em seu próprio gênero – e que, portanto, são denominados com a expressão latina de sui generis – podemos citar: as topografias de circuitos integrados;[4] as cultivares;[5] e os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.[6]
Portanto, atualmente, a propriedade intelectual compreende três dimensões distintas:
·
propriedade industrial;
·
direito autoral; e
·
direitos sui generis.
Seja em que dimensão for, os diversos instrumentos jurídicos de propriedade intelectual possuem o traço comum de serem reconhecidos pelo Estado. Dessa forma, em geral, são expressos por meio de um título de propriedade: carta patente; registros de marca, desenho industrial, programa de computador, topografia de circuito integrado; entre outros).[7]
Além disto, a concessão dos direitos de propriedade intelectual, pelo Estado, também importa, em geral, na divulgação de seu conteúdo ao conjunto da sociedade, por meio do acesso a bancos de dados que deverão estar disponíveis para livre consulta.
Então, voltando às perguntas...
se
estamos diante de propriedade ou,
mais precisamente, de propriedade
intelectual...
as
respostas só podem ser negativas.
Isto porque, como se nota do tenso diálogo estabelecido na Comissão das Forças Armadas do Senado estadunidense, as tecnologias do Homem de Ferro permanecem sob a esfera do conhecimento privado das Indústrias Stark.
Aliás, permanecem e assim continuarão ad infinitum, no que depender de Tony Stark, constituindo, de fato, um segredo industrial.
Obviamente, existem motivações diversas que levam ao amadurecimento da estratégia empresarial neste ponto específico: propriedade ou segredo. Para algumas empresas, pode ser interessante optar indiscriminadamente pela proteção conferida através da propriedade intelectual. Para outras, talvez a melhor opção seja buscar o caminho alternativo do segredo industrial.
Mesmo dentro de determinada empresa, alguns bens podem ter estratégias diferenciadas, sendo uns protegidos pela propriedade intelectual e outros mantidos em sigilo.
Em outra perspectiva, um único produto e/ou processo pode ser conservado em segredo industrial em fases iniciais de sua concepção e, mais à frente, vislumbrar-se que possa ser protegido formalmente pela propriedade intelectual. Enfim, não há uma única regra que sirva a todos os casos. Da mesma forma, os impactos em se adotar um ou outro caminho também são diferentes.
Desta importante discussão, extrai-se que realizar a opção estratégica entre um ou outro caminho não é assunto trivial. Isto porque, a proteção formal pelo sistema de propriedade intelectual ou a eficaz manutenção do segredo importa na valoração de diversos fatores.
Sob o ponto de vista jurídico, esta avaliação, por um lado, deve considerar que a propriedade intelectual possui a vantagem de ser conferido um título jurídico pelo Estado (expresso na carta patente ou nos certificados de registro). A desvantagem, contudo, reside na limitação temporal. No caso das patentes, por exemplo, o prazo máximo de exploração é de 20 anos.
De outro lado, o segredo industrial, por não se sujeitar a prazos, tem a vantagem de perpetuação no tempo. Além disso, muito embora não constitua propriedade, esta opção também possui certa proteção legal.
Segundo esse regime, quem divulga, explora ou utiliza segredo industrial obtido por meios ilícios ou fraudulentos, comete crime de concorrência desleal, conforme dispõe o art. 195, da LPI:
“Comete crime de
concorrência desleal quem:
XI - divulga, explora
ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados
confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços,
excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para
um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou
empregatícia, mesmo após o término do contrato;
XII - divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a que se refere o inciso anterior, obtidos por meios ilícitos ou a que teve acesso mediante fraude”.
Entretanto, para que o regime de proteção ao segredo industrial produza efeitos, é necessário que existam meios e real intenção em resguardá-lo. Do contrário, pode-se interpretar que, mesmo sendo de conhecimento restrito, não chegou a configurar um segredo.
No caso em estudo, desde o início da trilogia, o Homem de Ferro, considerando que já não poderia mais confiar em ninguém, atribuiu os seus segredos tecnológicos exclusivamente à inteligência artificial JARVIS.
Conforme as regras existentes no sitema internacional, esta necessidade de tomar as precauções devidas, para guarda do segredo, encontra previsão, no conjunto de acordos a serem observados pelos países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Assim, conforme o Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights - Acordo TRIPS:
“Artigo 39 1. Ao
assegurar proteção efetiva contra competição desleal, como disposto no ARTIGO
10bis da Convenção de Paris (1967), os Membros protegerão informação confidencial
de acordo com o parágrafo 2 abaixo, e informação submetida a Governos ou a
Agências Governamentais, de acordo com o parágrafo 3 abaixo.
2. Pessoas físicas e jurídicas terão a possibilidade de evitar que informação legalmente sob seu controle seja divulgada, adquirida ou usada por terceiros, sem seu consentimento, de maneira contrária a práticas comerciais honestas, desde que tal informação: a) seja secreta, no sentido de que não seja conhecida em geral nem facilmente acessível a pessoas de círculos que normalmente lidam com o tipo de informação em questão, seja como um todo, seja na configuração e montagem específicas de seus componentes; b) tenha valor comercial por ser secreta; e c) tenha sido objeto de precauções razoáveis, nas circunstâncias, pela pessoa legalmente em controle da informação, para mantê-la secreta”.
De outro lado, um ponto específico a ser considerarado é o aspecto econômico-financeiro. Neste particular, as empresas devem levantar os potenciais custos e benefícios. Isto deve ser feito, tanto sobre as implicações de utilizar o sistema de propriedade intelectual, quanto em relação aos processos internos que terão de implementar e manter, caso queiram guardar a tecnologia em segredo.
Enfim, como se buscou ilustrar pela linguagem do cinema, a exclusividade da poderosa armadura de guerra do super-herói ocorre pelo segredo industrial e não pela propriedade.
De fato, a opção das Indústrias Stark, pelo segredo industrial, parece bastante compreensível.
Mas... no mundo real... como é de se esperar, nem sempre é tão simples...
Em que pese a existência de extensa e complexa legislação brasileira sobre propriedade intelectual, constata-se, ainda, a falta de cultura organizacional, que permita utilizar os variados instrumentos de forma mais efetiva.
Pensando nisto, deixamos as seguintes questões para reflexão:
1. Em
sua empresa ou plano de negócios em elaboração, há conhecimentos, que podem ser considerados como de valor estratégico ou sensível?
2. Estes
conhecimentos estratégicos já causaram o seguinte dilema: devo guardá-los em segredo
industrial
ou será melhor protegê-los pelo sistema de propriedade intelectual?
3. De
que forma os concorrentes, em seu ramo de negócio, protegem os produtos e
processos comercializados?
4. Estes conceitos básicos sobre propriedade intelectual foram úteis ao seu atual empreendimento ou plano de negócios em elaboração?
Por fim, também deixamos o gancho de uma fala da personagem Virgínia Pepper, já sob a forte pressão do cargo de CEO das Indústrias Stark:
- Temos os melhores advogados de patentes! E não podemos processá-los?
Isto nos leva à uma outra reflexão, sobre este intrigante instrumento de propriedade intelectual:
Referências:
[1] A Lei nº
9.279, de 14 de maio de 1996 regula direitos e obrigações relativos à propriedade
industrial.
[2] A Lei nº
9.610, de 19 de fevereiro de 1998 altera,
atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras
providências.
[3] A Lei nº
9.609, de 19 de fevereiro de 1998 dispõe sobre a proteção da
propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País,
e dá outras providências.
[4] A Lei no 11.484,
de 31 de maio de 2007 dispõe sobre a proteção à propriedade intelectual das
topografias de circuitos integrados.
[5] A Lei nº 9.546, de 25 de abril 1997 institui
a Proteção de Cultivares.
[6] A Lei nº
13.123, de 20 de maio de 2015 dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a
proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição
de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade.
*Texto adaptado do meu capítulo Proteção do conhecimento em tecnologias de Defesa Nacional: perspectivas a partir da obra “Homem de Ferro 2”, que tive a oportunidade de contribuir para o livro A propriedade intelectual na visão do cinema: olhares interdisciplinares, organizado pelo professor Carlos Ardissone e publicado pela Editora Lumen Juris (Rio de Janeiro, 2022).
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